Saía cedo de casa, sempre no mesmo horário, mas mesmo assim acabava
por se atrasar. Um dia era o trânsito, o outro, um acidente, o
outro, uma lembrança doce que merecia ser de-gus-ta-da... Naquela
segunda, apesar de tudo, as coisas não pareciam diferentes. Com o
mesmo ar de normalidade cotidiana acordou às seis, bebeu o fraco
café com dois biscoitos (manter o regime era fundamental), vestiu-se
de forma inapropriada para o clima (não conseguia acertar nunca!) e
saiu para o trabalho.
No carro, ligou o rádio. “Hummm, AQUELA música...”. Cantava
melancolicamente a trilha sonora do seu pior momento. “Que final de
semana...” pensou. Conseguiu trancar a lágrima que já se
insinuava pensando no lugar mais comum dos pensamentos: o tempo! Em
uma rápida análise do entorno ficou apreensiva, “O tempo já está
se armando. É chuva na certa...Droga! Meus sapatos de camurça novos
vão estragar! E eu nem paguei a primeira parcela...” Enfim, o que
não tem remédio, remediado está, já dizia sua vó. Concentrou-se
no trânsito.
Foi passando pela praia que avistou a primeira luz. Vinha forte, lá
das bandas do mar. “Um espelho refletindo talvez”. Seguiu pela
avenida que contornava a orla. Nova luminosidade fez-se notar, agora
vinda de três direções, do mar, da areia e do céu. Pareciam
canhões de luz, desses que se usam nas festas de final de ano. Três
feixes brancos e intensos que venciam a luminosidade do dia nublado
brincavam no ar e diante de seus olhos. Estacionou.
Saiu não acreditando que havia parado por aquela bobagem! Iria se
atrasar feio e seu chefe iria ficar louco! “Dane-se o chefe!”,
riu com a insolência. Descalçou os sapatos e os guardou no carro.
“Pelo menos não iriam estragar...” Pisou firme na areia grossa.
As luzes pareciam que se cruzavam em um ponto determinado bem na
beira. Foi com cautela que se dirigiu para lá surpresa de que
ninguém mais havia percebido este movimento monocromático. Bingo!
Todos os clarões uniam-se em um mesmo ponto. “Vinham de onde?”
Parecia que esta pergunta era boba, sabia que deveria se concentrar
no ponto de intersecção reluzente no solo. Sentou-se bem no meio e
olhou o horizonte. Não sentia medo, sentia paz. A areia era mole e,
em poucos instantes, foi tragada totalmente pela terra.
Caía rápido, escorregando por paredes que nunca imaginara que
pudessem existir. Sempre gostara da história de Lewis Carroll, mas
isso já estava ridículo. Olhos a acompanhavam por todo percurso
podia os perceber como pontos de luz no breu. “Seriam eles os
responsáveis pelas luzes dançantes lá de cima?” Aterrissou de
forma leve em um suntuoso ambiente. “Agora só faltava o coelho
gritando : - É tarde, é muito tarde!”.
Olhou em volta. Espelhos por todos os lados fechavam o espaço
arrendondado. Tochas serviam de iluminação. O ar, irrespirável, a
ofertava com uma sensação claustrofóbica. Ficou em silêncio
tentando não se agitar para continuar respirando. Eles estavam lá.
Os olhos que a acompanharam na descida estavam espalhados por toda
volta. Todos não a perdiam de vista. “O que queriam? Quem eram?”
Não sabia o porquê mas sabia que não deveria perguntar. Sem
respostas permaneceu muda.
Uma música soou suave, doce. “Aquela música de novo?!
Impossível!”. Diante de tal quadro esboçou um sorriso débil “O
que seria mais impossível do que aquela situação?”. Ouviu a
melodia e deixou-se levar. Dançou. Dançou intensamente.
Seus
braços começaram a ganhar vida levados pelas mãos. Ondas sinuosas
estremeciam o tronco que não pensava em interromper a energia que
circulava entre as duas extremidades. Com movimentos compassados,
exigiu que as pernas a acompanhassem e começou a se desprender do
solo acabando, finalmente, por ganhar o ar. Com a convicção que
nada a impediria, lançou-se em todas as direções apenas usando os
sons como escadas. Subiu pelos acordes, rolou pelas notas, deslizou
nas pautas. Alcançou as tochas com seus cabelos soltos, livres.
Escalou as paredes úmidas, levitando ora aqui, ora ali. O ritmo
frenético que se impunha pelos sons fez com que a roupa colasse ao
seu corpo acentuando-lhe os contornos suaves e cada vez mais
translúcidos. Desapareceu no meio instante em que os olhos piscavam.
Acordou
atordoada na areia, pálida e com a certeza que não deveria ter
aumentado a dose do antidepressivo sem ordem médica. Afinal tudo um
dia acaba. Acabou. Deveria seguir sua vida em carreira solo. Ele
tinha sido bem claro, “Nunca mais me procure...”. Agora não
adianta surtar. A vida segue e “la nave va”...
Respirou
fundo, levantou-se, sacudiu a areia da roupa e preparou-se para o
sermão que ainda teria que ouvir no trabalho. Foi até o carro e no
instante em que calçava os sapatos, a chuva começou intensa. “É
Alice, tudo ainda pode piorar...”. Seguiu pensando em uma boa
desculpa.
Os
olhos continuavam a observando, mas decidiu não mais ligar para
isso.
(Uma crônica para variar. Espero que tenham gostado. Beijos Gisa!)
7 comentários:
Um acordar diferente.
A rotina dos dias feitos de coisas que se somam num acontecer sem medos.
~Um dia diferente numa rotina sempre igual
Um Domingo muito feliz
Deixo abraço
*******************
Querendo, visite(m)
http://pensamentosedevaneiosdoaguialivre.blogspot.pt/
Gostei muito da crónica.
Fiquei com vontade de saber mais sobre a Alice.
um beijinho
Gábi
Pobre Alice!
Excelente texto!
Bjos
Gisalindamiga
Ora aqui está uma cronista que não se dava ao conhecimento da multidão!!!... Com um textículo de ler e... chorar por mais. Boa!
Leio e releio, paro aqui, paro acolá, fico-me cá, corro pra lá e sempre vem ao de cima o desejo de recomeçar.
Com a convicção que nada a impediria, lançou-se em todas as direções apenas usando os sons como escadas. Subiu pelos acordes, rolou pelas notas, deslizou nas pautas. Alcançou as tochas com seus cabelos soltos, livres. Escalou as paredes úmidas, levitando ora aqui, ora ali.
Não consegui resistir e porque não me arrisquei a mais palavras roubei as que acima ficam e deitei-as ao vento.
Minha linda, manda mais destas, pois que lá dizia o nosso Pessoa:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.
E está tudo dito, digo eu...
Bjs da Raquel, qjs prás lindinhas (meus e dos gatões e da gatinha) abç ao maridão e um bilião e 178 milhões de qjs para tu
Henrique
um espelho transgressor, onde todas as imagens se libertam...
belo.
beijo
Todos os dias Deus nos dá um momento em que
é possível mudar tudo que nos deixa infeliz
e tristes.
Para isso precismos ter esperança e acima de
tudo muita fé .
Com esperança e fé tudo pode mudar dentro de nos
as coisas boas começa acontecer mudando toda nossa existência.
Esse é um instante mágico quando passamos a ter fé porque Deus
vem habitar dentro do nosso coração.
Estou deixando essas palavras por ter muito
carinho por você.
Desejo uma semana abençoada.
Beijos no coração,Evanir.
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