domingo, 7 de julho de 2013

ALICE?

 Saía cedo de casa, sempre no mesmo horário, mas mesmo assim acabava por se atrasar. Um dia era o trânsito, o outro, um acidente, o outro, uma lembrança doce que merecia ser de-gus-ta-da... Naquela segunda, apesar de tudo, as coisas não pareciam diferentes. Com o mesmo ar de normalidade cotidiana acordou às seis, bebeu o fraco café com dois biscoitos (manter o regime era fundamental), vestiu-se de forma inapropriada para o clima (não conseguia acertar nunca!) e saiu para o trabalho.
No carro, ligou o rádio. “Hummm, AQUELA música...”. Cantava melancolicamente a trilha sonora do seu pior momento. “Que final de semana...” pensou. Conseguiu trancar a lágrima que já se insinuava pensando no lugar mais comum dos pensamentos: o tempo! Em uma rápida análise do entorno ficou apreensiva, “O tempo já está se armando. É chuva na certa...Droga! Meus sapatos de camurça novos vão estragar! E eu nem paguei a primeira parcela...” Enfim, o que não tem remédio, remediado está, já dizia sua vó. Concentrou-se no trânsito.
Foi passando pela praia que avistou a primeira luz. Vinha forte, lá das bandas do mar. “Um espelho refletindo talvez”. Seguiu pela avenida que contornava a orla. Nova luminosidade fez-se notar, agora vinda de três direções, do mar, da areia e do céu. Pareciam canhões de luz, desses que se usam nas festas de final de ano. Três feixes brancos e intensos que venciam a luminosidade do dia nublado brincavam no ar e diante de seus olhos. Estacionou.
Saiu não acreditando que havia parado por aquela bobagem! Iria se atrasar feio e seu chefe iria ficar louco! “Dane-se o chefe!”, riu com a insolência. Descalçou os sapatos e os guardou no carro. “Pelo menos não iriam estragar...” Pisou firme na areia grossa.
As luzes pareciam que se cruzavam em um ponto determinado bem na beira. Foi com cautela que se dirigiu para lá surpresa de que ninguém mais havia percebido este movimento monocromático. Bingo! Todos os clarões uniam-se em um mesmo ponto. “Vinham de onde?” Parecia que esta pergunta era boba, sabia que deveria se concentrar no ponto de intersecção reluzente no solo. Sentou-se bem no meio e olhou o horizonte. Não sentia medo, sentia paz. A areia era mole e, em poucos instantes, foi tragada totalmente pela terra.
Caía rápido, escorregando por paredes que nunca imaginara que pudessem existir. Sempre gostara da história de Lewis Carroll, mas isso já estava ridículo. Olhos a acompanhavam por todo percurso podia os perceber como pontos de luz no breu. “Seriam eles os responsáveis pelas luzes dançantes lá de cima?” Aterrissou de forma leve em um suntuoso ambiente. “Agora só faltava o coelho gritando : - É tarde, é muito tarde!”.
Olhou em volta. Espelhos por todos os lados fechavam o espaço arrendondado. Tochas serviam de iluminação. O ar, irrespirável, a ofertava com uma sensação claustrofóbica. Ficou em silêncio tentando não se agitar para continuar respirando. Eles estavam lá. Os olhos que a acompanharam na descida estavam espalhados por toda volta. Todos não a perdiam de vista. “O que queriam? Quem eram?” Não sabia o porquê mas sabia que não deveria perguntar. Sem respostas permaneceu muda.
Uma música soou suave, doce. “Aquela música de novo?! Impossível!”. Diante de tal quadro esboçou um sorriso débil “O que seria mais impossível do que aquela situação?”. Ouviu a melodia e deixou-se levar. Dançou. Dançou intensamente.
Seus braços começaram a ganhar vida levados pelas mãos. Ondas sinuosas estremeciam o tronco que não pensava em interromper a energia que circulava entre as duas extremidades. Com movimentos compassados, exigiu que as pernas a acompanhassem e começou a se desprender do solo acabando, finalmente, por ganhar o ar. Com a convicção que nada a impediria, lançou-se em todas as direções apenas usando os sons como escadas. Subiu pelos acordes, rolou pelas notas, deslizou nas pautas. Alcançou as tochas com seus cabelos soltos, livres. Escalou as paredes úmidas, levitando ora aqui, ora ali. O ritmo frenético que se impunha pelos sons fez com que a roupa colasse ao seu corpo acentuando-lhe os contornos suaves e cada vez mais translúcidos. Desapareceu no meio instante em que os olhos piscavam.
Acordou atordoada na areia, pálida e com a certeza que não deveria ter aumentado a dose do antidepressivo sem ordem médica. Afinal tudo um dia acaba. Acabou. Deveria seguir sua vida em carreira solo. Ele tinha sido bem claro, “Nunca mais me procure...”. Agora não adianta surtar. A vida segue e “la nave va”...
Respirou fundo, levantou-se, sacudiu a areia da roupa e preparou-se para o sermão que ainda teria que ouvir no trabalho. Foi até o carro e no instante em que calçava os sapatos, a chuva começou intensa. “É Alice, tudo ainda pode piorar...”. Seguiu pensando em uma boa desculpa.
Os olhos continuavam a observando, mas decidiu não mais ligar para isso.

(Uma crônica para variar. Espero que tenham gostado. Beijos Gisa!)

7 comentários:

Unknown disse...

Um acordar diferente.
A rotina dos dias feitos de coisas que se somam num acontecer sem medos.

" R y k @ r d o " disse...

~Um dia diferente numa rotina sempre igual

Um Domingo muito feliz

Deixo abraço
*******************
Querendo, visite(m)

http://pensamentosedevaneiosdoaguialivre.blogspot.pt/

redonda disse...

Gostei muito da crónica.
Fiquei com vontade de saber mais sobre a Alice.
um beijinho
Gábi

Escritora de Artes disse...

Pobre Alice!

Excelente texto!

Bjos

Anônimo disse...

Gisalindamiga

Ora aqui está uma cronista que não se dava ao conhecimento da multidão!!!... Com um textículo de ler e... chorar por mais. Boa!

Leio e releio, paro aqui, paro acolá, fico-me cá, corro pra lá e sempre vem ao de cima o desejo de recomeçar.

Com a convicção que nada a impediria, lançou-se em todas as direções apenas usando os sons como escadas. Subiu pelos acordes, rolou pelas notas, deslizou nas pautas. Alcançou as tochas com seus cabelos soltos, livres. Escalou as paredes úmidas, levitando ora aqui, ora ali.

Não consegui resistir e porque não me arrisquei a mais palavras roubei as que acima ficam e deitei-as ao vento.

Minha linda, manda mais destas, pois que lá dizia o nosso Pessoa:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente.


E está tudo dito, digo eu...

Bjs da Raquel, qjs prás lindinhas (meus e dos gatões e da gatinha) abç ao maridão e um bilião e 178 milhões de qjs para tu

Henrique

Manuel Veiga disse...

um espelho transgressor, onde todas as imagens se libertam...

belo.

beijo

Evanir disse...

Todos os dias Deus nos dá um momento em que
é possível mudar tudo que nos deixa infeliz
e tristes.
Para isso precismos ter esperança e acima de
tudo muita fé .
Com esperança e fé tudo pode mudar dentro de nos
as coisas boas começa acontecer mudando toda nossa existência.
Esse é um instante mágico quando passamos a ter fé porque Deus
vem habitar dentro do nosso coração.
Estou deixando essas palavras por ter muito
carinho por você.
Desejo uma semana abençoada.
Beijos no coração,Evanir.