sexta-feira, 5 de novembro de 2010

TRISTE PEÇA EM UM ATO

Abrem-se as cortinas.
Iluminação geral do palco.
Mobiliário sóbrio, impecável. Uma longa mesa de madeira de lei escura, cercada de cadeiras de espaldar alto, almofadadas de veludo vermelho. Um lustre de cristal que ocupa a metade do alto da cena, Todas as luzes acesas. Uma porta entalhada ao fundo. Muito silêncio e expectativa da platéia. Era noite.
Ouve-se barulho de chaves e, logo após, a porta é aberta com força fazendo voar as finas cortinas que cobrem os dois janelões que a ladeiam. Entra uma figura gorda, trajando um fraque negro e gravata borboleta. Muito solenemente, caminha pela sala e vai sentar-se à cabeceira da mesa. Está visivelmente irritado. Estala constantemente os dedos como se quisesse soltá-los das mãos. Olha para um lado, para o outro e grita:
– Culpa! Responsabilidade! Já cheguei! Venham logo, não tenho tempo a perder!
Surge correndo em cena uma figura esguia, com nariz obtuso e queixo pronunciado. Cabelos corretamente presos em um coque, um tanto quanto escabelado. Veste-se severamente. Tem mãos magras e dedos longos onde logo se percebe a deformidade: o indicador permanece sempre em riste.
– Ai Pensamento! Não precisa gritar! Estou aqui, sempre aqui! – exclama enquanto senta-se à mesa.
– Onde está Responsabilidade? – pergunta Pensamento já atordoado.
– Estou aqui. Calma. Nunca em minha vida cheguei atrasada. Estou sempre aqui, tu que não percebes bem. Estás precisando de óculos, já falei.– diz, mansamente, uma outra figura que surge na sala a partir de um canto sombrio. Ela é arrogante e carrega uma corrente na cintura fina e sem graça. Gaba-se por nunca sair do chão.
– Muito bem, todos presentes, podemos começar. – vira-se para o lado direito e grita – Que entre o infeliz!
Duas máscaras impassíveis entram em cena carregando uma maca onde se pode ver uma figura clara, quase translúcida, de onde emanam bolhas de sabão, multicoloridas. Vem cantando e sorrindo e, apesar de estar visivelmente muito fraca, teima em levitar na maca, que apenas carrega a sua sombra.
As máscaras repousam a estranha personagem em cima da mesa, diante do olhar de repugnância de todos, e desmaterializam-se imediatamente.
– Que nojo! E ainda canta! – disse Culpa torcendo o fino nariz.
– É, mas calma, não vai demorar muito agora – esclarece Pensamento – sejamos breves meninas, pois ainda tenho que descansar antes dos exercícios de meditação.
Todos se levantam e começam a analisar tão débil figura.
– Por onde devemos começar? – pergunta Responsabilidade ansiosa em traçar metas.
– Pelas bolhas! Pelas bolhas! – gritava, histericamente, Culpa, que detestava ver aquela manifestação inocente de alegria.
– Certo, pelas bolhas, então! – definiu Pensamento – Afinal, são elas que nos causam os maiores problemas, as eternas responsáveis pela levitação, pela música e por este irritante brilho nos olhos. Os Sonhos costumam prezá-las mais do que nunca, pois são através delas que sempre conseguem nos enganar! – rubramente enfurecido, grita – Estourem as bolhas! A determinação, feita em tom grave, seguiu-se da imediata execução da sentença através da utilização de todos instrumentos de extermínio disponíveis para aquela ocasião, as temidas balanças e medidas e os terríveis pesos.
As bolhas eram capturadas, uma a uma, e estouradas sendo que a espuma delas resultante era acondicionada em uma caixa, devidamente pesada por Responsabilidade e incinerada por Culpa.
Aos poucos, Sonho foi ficando cada vez mais fraco, não conseguia mais irradiar suas bolhas, foi descendo, lentamente, para a mesa, escurecendo, tornando-se mais denso, quase uma lama, e, ao ultrapassar a mesa, escorregou para o chão, escoando pelo vão das madeiras do assoalho.
– Pronto! Menos um para incomodar! – regojizou-se Pensamento olhando o relógio para conferir a hora da meditação – Vou me indo agora, até o próximo! – e com um leve cumprimento de cabeça às senhoras, dirigiu-se à porta de saída.
Culpa e Responsabilidade retiram-se de cena.
Cai a cortina.

9 comentários:

AC disse...

Gisa,
Esta é daquelas peças em que deveria ser permitida a interacção com a plateia. Seria interessante até que ponto alguém argumentasse a favor do Sonho...

beijo :)

Gisa disse...

Interessante AC gosto de tribunais e defesas, afinal, sou advogada...
Obrigada pela presença sua companhia é maravilhosa para mim.
Um bj

A.S. disse...

Adorei a criatividade e a forma expressiva como desenhas os personagens!...

Beijos!
AL

Luisana Gontijo (Lu) disse...

MA-RA-VI-LHA!!!

Gisa???
Você é teatróloga e não nos disse?
Que texto fantástico, menina?
Viajei, agora! Muito bom!
Desculpe dar pitaco a mais, mas acho que devia desenvolvê-lo e transformá-lo em uma peça de teatro. A ideia é maravilhosa, mesmo, amiga!
Parabéns, de verdade!
Beijo carinhoso!

ERICO BRATFISH disse...

Oiê,

Nossa!!!

Mergulhei de cabeça no ato.
É a realidade, matamos nossos sonhos todos os dias...

Beijos :)

Marinha disse...

PARABÉNS, Gisa!
Quanta sensibilidade e criatividade! Amei!
Bjs

Gisa disse...

Obrigada AL
Venha sempre que quiser.
Um bj

Obrigada pelo carinho e pela ideia Lu. Vou pensar seriamente.
Volte sempre, sua presença é importante para mim.
Bjs.

Era essa a ideia Érico. Obrigada pela visita, volte sempre
Um bj.

Obrigada Marinha.
Adoro te ver por aqui.
Um bj e retorne sempre que tiveres vontade.

Anônimo disse...

Gisa ,




Muito belo e intenso seu texto.
A gente se perde e se acha nele ...



BjO Grande .

Gisa disse...

Obrigada Malu
Bjs.